terça-feira, 23 de junho de 2015

Ora, já sei




Já sei que você vai me dizer
Que não te importa sangue
Que não te importa lágrimas
Que não te importa a fala presa na minha garganta
Não te importas em saber
Os gostos e desgostos
Dize: “Olha nêga, samba aí. Bota um sorriso nesse rosto e fique alegre por eu te deixar existir”
Não te importas com meu corpo ausente
Não te importas com ele mal representado
Nada mais te encanta que um preto no retrato
Imóvel, calado
“Venha se deite na minha cama, realize meus desejos, sua mucama”
Não somos sua distração
Comércio pra “mulatólogo”
Corpo para negociação
Ainda nos vendem como nos mercados
Aumentam nosso preço pelo tamanho do nosso sorriso
Me tiram humanidade, me fazem chacota, ouço os risos
Me colocam como carne em promoção
Me respeite, não sou costela de Adão!
Enquanto outras mulheres lutam pelo direito da livre exposição
Nós ainda lutamos para que vistam a representação de nossos corpos sempre despidos
Você não sabe que o motivo da nossa solidão
É uma social construção
Amante escondida
Sua musa clandestina
Não te importas nunca ter sido me dada a opção da fragilidade
Criarem mito sobre minha habilidade para o trabalho braçal
Para que eu me afaste do espaço intelectual
“Toque samba, seja artista
Mas não invada meu espaço, cotista!”


Não te importas com genocídio do meu povo
Não te importas com nossa pele ser a maioria em celas de presídio
Não te importas com nossos corpos sobre papelões nas avenidas
Manchetes apontam para mendiga branca, esta sim é bonita
Não me importo com os lugares que tu me queres delegar
Não me importo com o incomodo que meu cabelo te causa
Não me importo se você não quer me ouvir falar
Por que sei que pra ti o preto bem resolvido
É o que ri das tuas racistas piadas
É a negra que é objetificada calada
Não to me fazendo de vítima, cara pálida
Tô te denunciando
To denunciando o cansaço histórico que você me causa
To denunciando as violências que atingem meu corpo
To denunciando sua ideia de que um negro no beco escuro é suspeito e por isso merece levar seu tiro
To denunciando seus pensamentos sobre mim
126 anos de falsa abolição, de passos de formiga
Ainda tens coragem de me falar em racismo inverso
Não tem como você experimentar no meu universo
Apenas por ter sido chamado de palmito
Não foi seu rosto negro que sentiu necessidade de pó branco
Para se sentir mais bonito
Enquanto o privilegiado quer disputa de espaços de fala
Mais um corpo negro cai no asfalto
Mais uma “globeleza” entra em depressão
Mais uma Cláudia é arrastada
E nessa ilha de Rafael Bragas e Amarildos
Tento manter minha sanidade mental
Luto pra que não seja o meu, para que não seja o seu
O próximo corpo caído.
Bruna de Paula Pereira

Conversas com o espelho

Conversas com o espelho
(Bruna de Paula)
Tenho a estranha mania de pensar o mundo a partir do meu espelho, meu reflexo já foi uma soma do que disseram que eu era, do que queriam que eu fosse. Foi um processo dolorido encontrar o rosto atrás das máscaras que me eram colocadas. Mulheres da minha cor, mulheres negras desde meninas estão acostumadas a ter pessoas dizendo qual é o seu lugar. Ora falavam que meu pé tava na cozinha, ora que meu lugar era a frente de uma escola de samba, também escolhiam meu marido, diziam que deveria ser um gringo, um homem loiro, olhos claros, rico e que através disso eu iria mudar minha vida. Minha mãe sempre me incentivou a olhar além, disse que eu deveria estudar, trabalhar e batalhar pra ter minhas próprias coisas.
Cresci num mundo onde eu não era vista, um mundo onde dizia que todo mundo era igual, mas eu não era tratada como igual.
Na última semana, estive conversando com o espelho, onde hoje me vejo sem as máscaras, meu semblante insatisfeito tinha motivo. Miguel Fallabella, homem branco, quer levar ao ar a série “Sexo e as nega”, olhando o título, novamente senti como se quisessem colocar em mim as tais máscaras que me anulavam no passado. 4 amigas, moradoras de um bairro pobre, em subempregos e loucas por sexo. E muitos se perguntam, onde está o problema?
Para que melhor fique ilustrado, eu sempre retorno a minha infância, onde as mulheres da minha cor nunca estavam representadas nos cargos das empresas das novelas, nunca era a esposa do dono dos impérios retratados, nunca eram as donas dos impérios. Mulheres negras não estavam nos concursos de belezas, só nos que eram pra representar uma beleza carnavalesca. E nas aulas de história, eu só conseguia dar graças a Deus por não ter nascido uns 200 anos mais cedo. Quando comecei a viver minha vida amorosa/sexual os rapazes não flertavam comigo falando sobre minha beleza, o flerte era sempre sobre como mulheres negras eram quentes e fogosas.
Miguel Fallabella, dar protagonismo não é fazer isso que você está fazendo, reforçando estereótipos. Sim, gostamos de sexo, não há problema nenhum nisso, mas quando nossa imagem é somente remetida a mulheres de sexo fácil, quando nos objetificam e você contribui pra dar visibilidade a essa imagem, você não está nos tornando protagonistas. Quando você não ouve nossas vozes e nos chama de capitães do mato por estarmos reivindicando nossos direitos, você não nos dá o protagonismo. Sim, nós somos domésticas, mas também somos advogadas, professoras, pedagogas, psicólogas, nutricionistas, veterinárias, esteticistas, figurinistas... 


Quando acontece um caso de racismo que chega ao conhecimento de todos, como tem acontecido com o racismo no futebol, os artistas se mobilizam, fazem campanhas publicitárias contra o racismo, comem bananas. Mas no dia a dia, é na nossa cara que a banana é jogada, são os nossos corpos que são arrastados e jogados nos becos. A mídia que faz a campanha é a mesma que nos invisibiliza e silencia, não nos dá destaque e quando dá, temos que ficar satisfeitos com qualquer coisa “qual foi pretinha, to aqui pagando de princesa Isabel, te ajudando e você ainda quer reclamar?”, foi exatamente o que eu interpretei do pronunciamento do Miguel Fallabella.
A grande mídia contribui para que não sejamos reconhecidos como seres humanos em sua plenitude e aguarda a bomba estourar para dizer que está do nosso lado fazendo campanhas pouco eficientes, já que diariamente torturam e desgraçam a nossa imagem.
Meu espelho reflete a luta das minhas ancestrais, refletem o sorriso das minhas irmãs, suas histórias de vitória ou dor. Meu espelho não reflete nenhuma história que um branco equivocado resolva contar sobre mim.
E não precisa me dizer que a série ainda nem começou pra eu estar aqui falando, eu vivencio os julgamentos há 23 anos, já sei quando vão honrar ou não minha história só lendo a capa do livro. Quem quer reafirmar nossas lutas, ouve nossas demandas em vez de dar o que supõe que a gente precisa.
E se tem uma coisa que a gente não precisa, é mais gente divulgando a nossa imagem como a carne mais barata do mercado.